“Ich bin hier“, repetia o vô Lucas pausadamente, dando ênfase na pronúncia de cada palavra. “Eu estou aqui”.
Eu tinha pedido para ele me ensinar a falar alemão pouco tempo antes. Foi quando ele tinha me contado que sua mãe, minha bisavó, vinda da Alemanha e falava o idioma com os filhos, mas parou na época da guerra para que ninguém soubesse que a família era alemã. Naquela época, era complicado ser imigrante vindo do país do lunático do bigodinho preto.
Ele me contou também sobre o bolo de banana que a bisa fazia e que ele, ainda criança, ia levar no quartel da rua de baixo.
Vovô gostava de contar histórias. Eram até meio chatas as aulas, já que ele divagava muito entre um verbo e outro e demorava horas para terminar um capítulo do livro. Contava de quando estudou no Mackenzie, de quando conheceu minha avó, da época do coral da igreja, de quando foi construir Brasília com outros engenheiros (e a família toda a tiracolo) na época em que tudo por lá era barro. E ele ria, gesticulava com as mãos, imitava vozes, fazia pausas dramáticas, olhava no olho para ver se a gente estava prestando atenção no que ele dizia, se estávamos envolvidos na narrativa. As aulas acabaram rareando e não cheguei a aprender alemão…
Quando o mal de Alzheimer deu seus primeiros sinais, vovô contava a mesma história algumas vezes. Tinha dias em que, se você não o interrompia, ele contava a história em looping. Chegava ao fim e falava “já te contei que eu tinha uma cadeira cativa no Morumbi?” logo depois de ter contado porque deixou de frequentar o estádio por conta da violência do lado de fora. E eu nunca interrompia. “É mesmo, vô?”, e lá ia ele de novo pro começo da história. Ele ficava feliz. Ele adorava contar histórias…
A doença foi avançando, e elas começaram a deixar de fazer sentido. Ele descrevia cenas, mas já não tinham mais contexto. Depois, nem as descrições eram reais – vovô começou a delirar.
Essa semana, vô Lucas morreu. Ele estava morando em uma casa de repouso há poucos meses, e fui visitá-lo algumas vezes. Ele já estava no estágio mais triste do Alzheimer, sem noção da realidade. Ficava agressivo, xingava todo mundo, não sabia mais quem era quem.
Fui correndo para a casa da vovó assim que soube. Sentei naquela mesa de jantar, a mesma em que eu me sentava com caderno e lápis na mão depois da escola, logo depois de almoçar alguma coisa boa que vovó preparava, para aprender a língua esquecida da família. Não aprendi nem dez palavras em alemão. Mas entendi que as histórias que tanto atrapalhavam a aula foram a coisa mais preciosa que aprendi. Não foi à toa que virei, eu mesma, uma story teller, como os modernosos gostam de chamar os contadores de história hoje.
Vovô se foi. Mas, de alguma forma, du bist hier, Großvater. Em mim, nos meus primos, na vovó, na casa, na minha mãe, nos meus tios.
Esta história, infelizmente, chegou ao fim. E não me resta mais nada a dizer além de dankeschön, vovô. <3
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Obrigada filha, por relembrar da historia do vô ! Também virei uma versão de " contadora de historias" ao me tornar psicóloga e professora ! Ele nos deixou um legado!!!!
Linda história, que bom ter coisas e situações para relembrar, meus sentimentos Cintia
Cintia, reviví bons momentos e grandes histórias contadas pelo vô, lendo seu texto. Sei que todos da família vão se lembrar de uma (ou várias). São essas boas lembranças que vamos levar para sempre, nos deixando saudades. Obrigada... bjs
"Sembrar la memoria para que no crezca el olvido"...
_Edgardo A.Vigo.
Só emoción...AMAMOS¿¿¿
Besotlissssssssss dos "2"de CORAZON.
Além de escrever muito bem, VC descreveu perfeitamente o que realmente levaremos de toda história de vida dele e que as que ele nos contava. Levaremos lembranças de histórias que não vivemos, mas que estavam vivas na memória dele, como um livro sem ilustrações. Levaremos um gostinho do antigo, daquilo que está se perdendo com a tecnologia e a própria evolução, que são as histórias passadas de família de pai para filho... Levaremos valores que talvez nossos filhos e netos não levarão. A repetição ajuda na memorização... Sempre lembraremos da cadeira cativa tão citada, assim como dar boa noite para apresentadores de telejornais e disputar o último pedaço de pudim da vó! Eram manias engraçadas, repetitivas, mas que virarão nostalgia!
A doce canção de um riacho encharcando a terra
Envolve-me de ternura com a sua suavidade...
Terra - onde começou a vida e agora me espera,
Quando, simplesmente, eu for saudade.
Ninguem morre, se estiver vivo no coração de alguém!
Esta canção quero carregar para a eternidade,
Para que embale doces sonhos e lembranças
Se, um dia, em algum coração... eu for saudade...
Quebrando o silêncio, meu suspiro de saudade...
Ao meu companheiro e amigo José Henrique
que ainda vive no meu coração...
Um ano sem o vô Lucas! Muitas lembranças e muita saudade!!