Marcha das vadias de 2011: cartaz diz “acredite ou não, minha saia curta não tem nada a ver com você”. Foto: Mario Ângelo/ Sigmapress/AE.
A gente vai a um restaurante e percebe que, na mesa ao lado, há uma moça com o que pode ser a menor saia do mundo. Como você reage?
A reação mais comum, acho eu, é fazer um julgamento negativo. Cutucar a pessoa que está com você e dizer, discretamente, “olha que piriguete”, “ela não se dá o respeito”, “isso é roupa que se use em púbico?”.
Essa atitude tão “pessoal”, tão cheia do nosso “direito de achar o que quiser”, é o primeiro passo para o estupro.
Aí você me diz: “mas Cíntia, peraí, não é porque eu acho que a pessoa não deve sair como uma vadia pela rua que sou um estuprador!”. E você está certíssimo (graças a Deus…).
Porém, a violência contra a mulher é como o grande rio que começa numa nascente tímida.
Ela começa na cabeça de cada um de nós quando pensamos que uma mulher deve se vestir e agir de forma recatada para merecer, conquistar ou manter o respeito dos outros.
Se desenvolve quando propagamos essa idéia fazendo comentários negativos, lançando olhares tortos e atribuindo à mulher fora do padrão casto nomes pejorativos (galinha, vadia, vagabunda, dada, puta…). Cada vez que criamos e seguimos regras de conduta repressivas, que dizem que uma mulher não pode transar no primeiro encontro ou que quem usa decote no trabalho está querendo subir na carreira por meios escusos.
Cresce cada vez que uma mulher deixa de agir ou se vestir da forma que quer por medo de ser vista como uma vagabunda.
Atinge a maturidade quando, ao tomar conhecimento de um abuso contra uma mulher, nós perguntamos o que ela estava vestindo, como estava se comportando, onde e com quem estava (ou pior: se disse não, se reagiu, se gritou alto o suficiente), reforçando que, se a vítima estiver fora do padrão de “mulher de respeito”, “me desculpe, mas ela se colocou na situação”.
E chega à sua forma mais forte e grotesca quando um homem, que compartilha desse pensamento, vê numa mulher fora do papel de mulher “de respeito” e se sente no direito de tocar seu corpo, mesma contra o consentimento dela.
Uma mulher pode ter ser violada de várias formas, e todas são terríveis. É o entrevistado babaca que enfia a mão debaixo da saia de uma apresentadora porque acha que ela “se apresenta como um objeto” (palavras dele), o cara que botou o pinto pra fora num metrô de São Paulo para encoxar uma passageira (true story), o cliente que estupra a prostituta que lhe negou serviço. Mas também é aquele idiota que apertou sua bunda no ônibus lotado, que segurou seu rosto para tentar roubar um beijo que você negou na balada, que te constrangeu no meio de uma reunião de trabalho ao comentar o tamanho dos seus seios por achar que, se você saiu de casa “com essa roupa”, tem mais é que ouvir mesmo.
Quando a gente fica indignado com abuso sexual de uma pessoa casta (com razão), mas faz ressalvas quando a vítima não é tão recatada assim, estamos ajudando a reforçar a cultura do estupro, cultura da violência contra a mulher, que é apenas uma das facetas do machismo.
Então o exercício que proponho hoje é que você, homem ou mulher que me lê, conte quantas vezes você julga uma mulher nesta semana pela maneira como ela se veste ou se comporta. Não precisa contar pra ninguém, fica entre nós… Mas perceba seu papel nessa cultura horrenda. Envergonhe-se. Quebre o ciclo e mude sua postura.
Uma das principais formas de combater o preconceito é olhar pra dentro, perceber como somos preconceituosos e nos corrigir. É desconstruir o preconceito de dentro pra fora.
Ficam aqui duas recomendações de leitura interessantes: uma matéria da TPM chamada Vadia, eu? que traz depoimentos de mulheres que gostam de se vestir de forma sensual, mas, vejam só, não gostam de ser desrespeitadas; e uma da Carta Capital intitulada gritando e ninguém ouve, sobre a relação direta entre acharmos normal que uma mulher “vestida assim” sofra algum abuso “menor” e a incidência de estupros.