Sou uma pessoa medrosa. Tenho medo de assalto, de estupro, de acidente, de gripe. Eu saio para caminhar na rua em plena luz do dia e meu coração salta cada vez que um homem se aproxima demais. Eu uso cinto de segurança no banco de trás desde sempre. Eu entro nas relações morrendo de medo de ter meu coração partido.
Às vezes, o medo é um aliado, que serve para que a gente se proteja. Cinto de segurança, camisinha, vitamina C.
Mas o medo pode também paralisar. Fazer a gente não conseguir sair de casa, deixar de fazer o que quer, sofrer de ansiedade o tempo todo. O medo aprisiona e passa a ser o próprio algoz. Sabe aquela coisa de as pernas ficarem moles bem na hora que você precisa correr?
Ando enfrentando meus medos. É difícil, sempre, mas sigo tentando. Mas não é nada de extraordinário, se você pensar bem: é só o medo de que os meus medos me coloquem em mais perigo ainda.
Nos últimos dois dias, por exemplo, eu fui pra rua protestar contra o golpe.
Foto: Ana Freitas.
Primeiro, na terça, dia seguinte do interrogatório de mais de 14 horas a que foi submetida Dilma guerreira. Eu estava cagando de medo, como vocês podem imaginar. Moro em São Paulo, lar da PM assassina de Alckmin, aquela que, em manifestações, desce o cacete em professor e secundarista sem dó (isso quando não tá exterminando negro na periferia). Imagina?
Era uma manifestação pacífica, mas isso nunca foi motivo pra PM não bater. A única garantia de não apanhar da PM ao me manifestar é usar verde-amarelo e gritar “Fora Dilma”.
Fui com uma amiga que tem experiência em manifestações e é a pessoa mais destemida que conheço. Ela me incentivou, me deu a mão, me ensinou a ficar de olho nos movimentos da PM para entender quando o chabu começa e pra onde correr. Saí cedo, antes da confusão. Ela me perguntava “você já quer ir embora?” e eu dizia “eu só não quero apanhar”. Que coisa, né. Ninguém ali quer apanhar. O que todo mundo quer é se fazer ouvir: Fora Temer; Golpistas facistas não passarão; Nem recatada e nem do lar, a mulherada tá na rua pra lutar.
Cheguei em casa e li as notícias: teve tiro, porrada e bomba pouco depois de eu sair. Escapei.
Ontem, o golpe se concretizou. Passei a tarde assistindo ao circo, vendo a presidenta “inocenta” (adorei esse neologismo) ser afastada injustamente por uma corja de corruptos ufanistas e o golpista inelegível e ilegítimo Michel “Fora” Temer tomando o poder.
Eu estava puta, e cagando de medo. Sabia que, no golpe day, a manifestação seria maior, a indignação do povo seria maior, e a repressão policial seria maior também.
Mas o medo que venceu foi o de não fazer parte do que, no meu coração, é a única resposta possível a um golpe de estado. De, lá na frente da minha vida, ter que lembrar que, no dia do golpe, eu engoli seco e não saí de casa. Do meu auto-julgamento.
Saímos da Paulista, milhares de nós. E lá fomos, gritando e cantando: FORA TEMER! Estava lindo… No caminho, passamos por um imóvel ocupado por famílias sem teto e vimos as criancinhas na janela acenando, enquanto cantávamos: “ocupar e resistir!”. Chorei.
Fiz bem em ir… Tirar do peito aquele grito de revolta, sair do Facebook e daquela gente escrota reclamando de protesto no meio da semana “atrapalhando a vida de quem trabalha”, como se nada de grave estivesse acontecendo neste país.
Foi no meio da Consolação que a coisa azedou. Começou uma confusão na pista oposta. Barricada, correria. Vi as motos da PM descendo e chamei minha amiga: “vamos pra longe”.
A gente mal começou a se afastar e aconteceu: tomei a primeira bomba da PM.
Eu nem tinha visto, mas ela agarrou minha mão e disse “corre!”. PÁ!, estourou a primeira. Fumaça, correria, gritos. Larguei o cartaz no chão, não larguei a mão dela e corri como nunca na vida. PÁ!, veio a segunda. A gente se enfiando pelas ruas escuras, o grupo se dispersando. Cagaço de torcer o pé pelo caminho, minhas pernas enfraquecendo, minha respiração no limite, e ela me dizia “Não para! Não para que é pior”. Lembrei de todas as cenas que vi de policiais espancando manifestantes e o terror tomou conta de mim.
Corremos até cansar e paramos quando pareceu seguro. Vinagre na blusa, pra combater os efeitos do gás lacrimogêneo, vinagre na cara para lavar a tinta guache com que tínhamos pintado o rosto (e aquele medo do caralho de um PM me ver com a cara pintada?), lenço vermelho enfiado no fundo da mochila. “Vamos entrar em um desses bares aqui, nos refugiar”, eu sugeri, e ela me explicando que esses estabelecimentos fecham as portas de uma hora pra outra e, de repente, a gente fica sozinha na rua escura de noite. Já é uma perspectiva que me mata do coração na CNTP, você imagina sabendo que tinha um batalhão do Choque louco pra me dar umas porradas. E olha que eu sou branca, classe média e tava na área mais famosa da cidade. Imagina pra irmã negra periférica?
As pessoas diziam “vamos por ali! Segue pra Roosevelt!” e eu só pensava: “nem fodendo”.
Minha amiga quis continuar, eu quis ir embora. Nos abraçamos, ela seguiu a luta e entrei num táxi pra vir pra casa.
Comecei a me sentir segura de novo no conforto do banco de couro, ar condicionado ligado, vidros fechados. Aquele cheiro de vinagre, suor esfriando, o coração voltando ao normal. Nas ruas, aquela gente corajosa seguia gritando “não vai ter sossego! É só o primeiro dia da Era Temer!”. Eu no banco de trás (de cinto de segurança, claro), com vergonha de ter arregado, mas sabendo que de nada serve uma pessoa desesperada no meio da luta.
Mais barricadas na rua, sacos de lixo pegando fogo, manifestantes bloqueando as vias, o caos. Porque diante da PM assassina, resistência pacífica de cu é rola.
O taxista fazendo suas manobras, louco pra conseguir sair daquele caos, e eu ali dentro, torcendo pra ninguém atacar o carro e, ao mesmo tempo, feliz de ver que as pessoas não engolem o fim da democracia em silêncio, não.
Cheguei em casa só o pó. No Whatasapp, colhendo notícias. Minha amiga passou por mais uns trocentos sufocos e conseguiu chegar bem em casa. Minha cunhada também tava lá, contou que também tomou bomba, mas tava bem. Outra querida, que assistia a tudo da janela de casa, me contava que a PM tava jogando bomba de cima dos helicópteros e me consolando, dizendo que a gente tem que ir mesmo pra fazer volume, pra botar pressão. Mas que, nessas horas, tem que ser prudente mesmo, só a linha de frente resiste (povo corajoso da porra). Alguns não escaparam ilesos. Uma estudante perdeu a visão de um olho, ontem.
Meu crime ontem foi levantar um cartaz escrito “Fora Temer”.
Pois seguirei lutando. Na medida do meu medo, do jeito que eu conseguir, mesmo que outros consigam mais, eu resistirei. Acho que covardia não é ter medo, mas ficar em silêncio diante da injustiça.
O medo de perder a democracia venceu.
(Fora Temer, golpista. Primeiramente e sempre.)
Foto de destaque: Nunah Alle para Mídia Ninja.
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