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A espera na estação e a paisagem na janela

Foi na Gare Cornavin que passei algumas das horas mais solitárias e desamparadas da minha vida.

É a principal estação de trem de Genebra, Suíça, onde morei por dois anos. De lá, saem trens para todos os cantos da Europa. É um dos poucos locais daquela cidade, normalmente bem parada, que está sempre super movimentado e cheio de gente de todo lugar.

Por um tempo, duas vezes por semana, bem cedo, lá estava eu, indo trabalhar em uma cidade vizinha.

Tudo era meio cinza nas manhãs na Gare Cornavin. Concreto por todos os lados, os prédios em volta, o céu que mal amanhecia, as roupas das pessoas. O lugar era relativamente quieto. Ninguém conversava a essa hora. Tudo que se ouvia eram ruído de trilhos, passos e ponteiros de relógios enormes por todos os lados (os suíços realmente valorizam pontualidade).

Precisava chegar com certa antecedência, para não perder o trem, que saía em intervalos super longos de quase uma hora, (meus chefes não eram muito flexíveis com horários, nem se sensibilizavam com a distância, o horário ingrato ou o frio da porra).

No entanto, eu também não podia chegar cedo demais à estação. A plataforma era descoberta e não tinha onde sentar, nem me abrigar do vento. Não tinha roupa que vencesse o frio. Deveras desagradável. Então, lá ia eu, zumbi assonada, com o tempo contadinho – nem de mais, nem de menos.

Eu também ficava em um estado meio zumbi. Não queria despertar completamente para conseguir dormir um pouco no trajeto de quase uma hora que se seguiria (eu chegava em casa tão tarde e tão exausta, e acordava tão cedo…), mas não podia me entregar muito à distração do sono para não fazer besteira.

É que eu estava naquela situação impotente de quem é novo em um lugar e não sabe como as coisas funcionam direito, somada ao pouco interesse que as pessoas à minha volta demonstravam em me ajudar (funcionários da estação inclusos). Talvez fosse meu francês de iniciante (meu esforço em aprender não surtia muita empatia), não sei…

Como, por exemplo, o dia em que descobri que, antes de entrar no trem, eu tinha que passar a cartela de passagens numa maquininha que fazia um furo e marcava o dia. Não ocorreu ao cobrador me dizer isso quando comprei os bilhetes, nem havia sinalização pela estação explicando, nada de “valide aqui seu tíquete”. Viajei umas três vezes até que fui “pega” e tomei um puta esporro do fiscal do trem.

Isso sem falar nos painéis meio enigmáticos de chegadas e partidas, nos vagões “primeira classe” (que eram mais caros) que tinham uma entrada idêntica aos demais, nos trajetos para meu destino que eram diferentes (mesmo trem, mesmo destino, mas com mais paradas), dependendo do horário.

Minhas manhãs na plataforma da estação, no inverno, eram só frio, silêncio, solidão, cinza, sono e a constante preocupação em não fazer merda. Era a exata síntese do meu momento de vida.

Tudo estava meio cinza, eu não sabia muito bem o que fazer nem tinha muito a quem pedir ajuda; não entendia muito bem os outros nem era bem compreendida por ninguém. Desorientada no trabalho, na cidade, no casamento, na vida.

Mas, todo dia, dava a hora e o trem chegava. Depois da primeira, segunda, terceira cagada, fui aprendendo o esquema. Eu entrava, escolhia uma poltrona meio isolada, perto da janela. Puxava o capuz do casacão, descia a touca até cobrir os olhos, deixava o bilhete no bolso, já no esquema pra pegar e mostrar quando ouvisse o agora conhecido “Bonjour, mesdames et messieurs” do fiscal e ficava ali, aninhada, quase todo o trajeto. A tensão passava e eu conseguia relaxar: tinha conseguido pegar a porra do trem com sucesso.

Quando estava chegando ao destino final, o trem fazia uma curva e, de repente, aparecia, pela janela, o Lago Léman, que separa a Suíça da França. Às vezes, tinha um pouco de neblina e um barquinho solitário desbravando as águas geladas, como eu estava fazendo. Os primeiros raios de sol saíam por detrás dos Alpes e a neve brilhava. Uma das paisagens mais lindas que já vi na vida. Me arrancava um sorriso toda vez. Fazia força para abrir os olhos e contemplar conscientemente, sabendo que era um privilégio ter uma vista dessas. Era a melhor parte do meu dia. Durava alguns pouco tempo; logo o trem fazia outra curva e a paisagem sumia.

Em alguns minutos, eu finalmente chegava ao meu destino e eu descia com pressa para dar tempo de comprar um café antes de encontrar a carona que me levaria até a agência para começar mais um dia difícil.

Esses dias, vi essa foto da Gare Cornavin em destaque no início do post, clicada pela minha amiga Janet, que mora lá, e o sentimento voltou numa dura memória emotiva. Aquele emprego não durou muito, nem a estadia em Genebra, nem meu casamento.

Mas lembrei também dessa paisagem que eu via no final, e encontrei uma foto que fiz num dia merda qualquer, porque queria guardar aquela recordação. Essa foto é muito simbólica pra mim. Ela é um lembrete de que há belas surpresas, dessas de tirar o fôlego, nas horas mais improváveis, numa curva qualquer da vida, e que tenho que fazer um esforço consciente para desfrutar delas, que agarrá-las, por que não se sabe quanto tempo um momento desse vai durar, nem quantas vezes vai se repetir.

A foto da Janet é o par perfeito para ela. Ela me lembrou de como é duro viver na insegurança e na solidão, a quilômetros da minha zona de conforto, me sentindo desamparada, sem saber quando essa sensação vai passar e quanto estrago vai fazer até que passe. Mas, mais importante que isso, ela me lembra que, assim como a espera na estação, esses momentos não são permanentes. O trem sempre chega.

Cíntia Costa

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